O CACD não é fácil para ninguém

maio 5, 2024

Que o CACD é um concurso elitista todos sabem. Que há cacdistas agraciados com a possibilidade de estudar em tempo integral sem se preocupar com a subsistência própria ou a de uma família inteira também não é novidade para ninguém. Que muitos candidatos sempre tiveram acesso às melhores oportunidades de educação acadêmica desde o berço também é um fato. Que há mais diplomatas brancos do que negros (pretos e pardos) no Itamaraty e que a diplomacia brasileira é composta esmagadoramente por homens – 1202 de um total de 1.562 diplomatas – são verdades gritantes.

Um candidato pode ter tido todas as facilidades que o nascimento em uma família abastada materialmente pode trazer e, ainda assim, malbaratar os recursos de que dispõe. Pode ter o dia inteiro para estudar às expensas dos genitores e não render. Pode ser homem e branco e não se tornar diplomata. O fato de que alguém tenha na vida os recursos e facilidades que outro indivíduo não teve (ou não tem) não é passaporte para o sucesso na empreitada cacdista.

Há muitas incongruências; em verdade, sequelas estruturais que dizem respeito a toda uma sociedade e não especificamente ao Itamaraty e ao Serviço Exterior Brasileiro. As discrepâncias são reais; mas, será que pensar nisso constantemente traz algum benefício real para o cacdista que se encaixa em qualquer fator de exclusão socioeconômico? Será que o ajuda a ter um melhor desempenho na (já tão penosa) preparação para esse concurso? A resposta, para mim, que me encaixo em vários desses fatores de exclusão, é “não”.

Eu sou uma mulher negra de 41 anos que passou parte da infância na favela. Sou também mãe, dona de casa e cacdista, exatamente nessa sequência. Tenho problemas de ordens variadas, e sigo estudando, de acordo com minhas possibilidades. Preciso me fortalecer a cada dia contra as influências daninhas, e não acredito que pensar em quem teve os privilégios de berço que eu não tive me faça mais forte. Preciso chegar à prova e vencê-la pelas minhas habilidades, aquelas que construí ao longo da vida, apesar dos pesares (que foram muitos, doloridos, e ainda o são) e sem procurar, nas externalidades, justificativas para não fazer, para não ser.

Eu não acredito em meritocracia – que fique claro – essa “conversa para boi dormir” que os homens inventaram para nos fazer acreditar que somos iguais e que temos acesso às mesmas oportunidades, numa solução simplista de que bastaria, portanto, um mínimo de esforço pessoal para um sucesso fácil e garantido. O conceito de meritocracia só cabe quando partimos todos de um mesmo ponto de comparação entre indivíduos ou grupos semelhantes que tiveram oportunidades idênticas.

Apesar disso, acredito que não é a sua classe social, nem são as suas posses, ou o seu gênero ou mesmo a sua cor que define se você vai se tornar diplomata. Nada disso pode ditar o seu sucesso ou o seu fracasso. A vida desiguala as pessoas, sim, e a nossa sociedade tem “castas” bem definidas – não sejamos ingênuos. Entretanto, a prova do CACD é isonômica no sentido de que a ela não importa o background do cacdista. Ela é equânime: não vê titulação acadêmica, cor de pele, conta de banco, preferência sexual ou religião do candidato. Por algumas horas, todos ali são meramente cacdistas.

Para vencer o CACD, você, que, como eu, se encaixa em algum dos (ou em todos os) fatores de exclusão social que listei aqui, precisa, por alguns instantes pelo menos, deixar de se sentir desigual e esquecer que outros receberam mais da vida. Porque, se você começar o projeto acreditando que vai dar errado, uma vez que outros tiveram melhores condições, a empreitada já falhou! A autoestima que nasce da fé em si mesmo é condição sine qua non para tudo na vida; e será também para a sua aprovação, como eu disse neste vídeo.

No final, senhoras e senhores, o que nos impede ou nos habilita, tanto para a vitória quanto para o fracasso, é a nossa própria mente, segundo a autoimagem com que a retroalimentamos.

Bons estudos.

10 Comentários

  1. Manoel

    Excelente texto !!!!
    Parabéns…

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    • pupila

      Obrigada, Manoel! 🙂

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  2. Gisela

    Amei seu artigo! Também sou mãe (de duas figurinhas, 2 e 4 anos), dona de casa e cacdista há menos de 1 mês, perdida no tempo e no espaço, sem grana pra cursinho e garimpando fontes e ebooks pela internet. 31 anos.
    Mas tenho fé na caminhada e não tenho pressa.
    Boa sorte nessa jornada.

    Abraços

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    • pupila

      Gisela, parece que você me descreveu quando eu comecei a pesquisar sobre o CACD! 😀
      Ter fé na caminhada é a condição primeira, sem a qual nada mais acontece. E não ter pressa – ah, esse é o pote de ouro no final do arco-íris.
      Meu desejo genuíno de que um dia a gente possa se encontrar no Itamaraty.
      Um abraço!

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    • Mauricio Dias

      Eu fui agraciado pelo papai do céu de ser filho único e ter nascido numa família de classe média paulistana eurodescendente, se não passar no cacd vou contratar um cursinho bom, um sapientia ou um barão Damásio. Eu acredito que o segredo do sucesso é a persistência. O finado Dr Enéas carneiro era paupérrimo, mas mesmo assim ele se tornou um médico cardiologista renomado e dep fed mais votado do estado de São paulo. Sim, dr Enéas era paupérrimo, seu pai um barbeiro e sua mãe era dona de casa num tempo que não existia políticas de ação afirmativa, ai vão me perguntar isto: como ele chegou lá sendo mestiço e paupérrimo? Eu respondo: chegou por meritocracia!!!!

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  3. Diego

    Descobri por acaso seu site. Confesso, de um cacdista para outro, que já estou gostando, tive afinidade com os conteúdos.

    Saudações diplomáticas!

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    • pupila

      Que ótimo, Diego! Procuro escrever conteúdos que instiguem a reflexão positiva.
      Utilize sem moderação!
      Bons estudos.

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  4. Luana

    Pupila, parabéns pelos textos. Este em específico me tocou.. aliás, seu canal no YouTube e blog têm me tocado. Obrigada pela força e atitude de compartilhar esse tipo de conteúdo.

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    • pupila

      Luana, sou eu quem te agradece. Não tenho nenhum objetivo com esse trabalho que não seja o de fazer bem aos colegas que passam pelo mesmo percurso. E fico muito feliz quando vejo um depoimento como o seu (inspiração para continuar)! Sigamos firmes!

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  5. Laila

    Maravilhoso!

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