Oito de setembro de 2019: o CACD inaugural e os pensamentos em torvelinho

maio 18, 2024

Reza o senso comum que a primeira a vez a gente nunca esquece. Ocorre, porém, que o meu senso prático diz que os detalhes de uma situação tendem a esmaecer da memória ou a ganhar tons diferentes dos do fato concreto com a passagem do tempo.

Pensando nisso, para imortalizar essa experiência da minha primeira vez no certame, decidi compartilhar com você, que me lê, impressões ainda “frescas” sobre a primeira fase da prova do CACD deste ano — o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, que desde 1946 ocorre, via de regra, anualmente, e abre as portas do Instituto Rio Branco, o famoso IRBr, para algumas dezenas de novos diplomatas.

Moro na serra do estado do Rio de Janeiro, em uma cidade encantadora chamada Nova Friburgo. Para realizar a prova, precisei me deslocar até a capital carioca, local onde nasci, com os “apetrechos” indispensáveis: cônjuge, criança e bagagem.

A noite anterior ao exame fora longa e cansativa e de movimentos contidos, literalmente; mal repousei, dividindo um colchonete fino de solteiro com a minha caçula, que quis dormir comigo. Não sei se por conta da despressurização — Friburgo fica a 2366m de altitude em relação ao nível do mar — ou se do meio litro de kombucha que ingeri, ou se por ambas as razões, fato é que, no fim do dia, lá estava eu com uma estranha sensação de torpor e tontura, semelhante, imagino, ao que sente quem tem labirintite. Deitei com a cabeça girando, mas com o coração apaziguado e a mente serena. Conversei com Deus, em linguagem simples e direta, numa prece do coração: “Você sabe o que me foi possível fazer até aqui. Sabe que dei o meu melhor até hoje, com todas as limitações que a vida me impõe. Entrego aos Seus Pés o resultado de amanhã”. Depois disso, entre dormitações, uma sensação ímpar de dever cumprido se apoderou de mim e, apesar da insônia (acordei às 4:12 e não conciliei mais o sono) e de um certo cansaço muscular, ergui-me bastante bem para encarar a maratona de seis horas que me aguardava.

Café da manhã frugal. O Uber chegou. Avenida Presidente Vargas, 642, sala 704. Candidatos enfileirados diante do prédio da Estácio de Sá para pegar o elevador que, aliás, só está parando no meu andar. Brindes de preparatórios diversos são postos na minha mão. Um ambulante grita “água, água, olha a água, compra comigo que o bebedor tá quebrado” e outro “caneta preta transparente, caneta preta, caneta preta”. Sala 704. “Ponha qualquer coisa eletrônica nesse saco e toda a sua comida nesse outro. Só pode deixar a identidade e a caneta sobre a mesa”, diz uma fiscal, enquanto o outro já faz a revista eletrônica. “Por que não tenho vários braços, como as deidades indianas, para poder segurar tudo ao mesmo tempo — cartão, identidade, celular, canetas, saco com os lanches, mochila?” Saí apenas com o necessário e mesmo assim me enrolei. “A sala está gelada. Ainda bem que estou usando manga comprida”. Fila número 3, cadeira 7. “Ufa!” Sentei-me colada à parede, entre os dois condicionadores de ar, protegida do frio direto nas costas. Um sujeito está de pé no meio do recinto observando tudo. Parece fiscal. Uma candidata começa a puxar assunto comigo, quebrando o silêncio expectante da sala. Fico meio sem jeito: o edital proíbe expressamente qualquer tipo de comunicação entre candidatos no ambiente de prova, sob pena de exclusão do concurso. Coração partido, sussurro para a senhora: “Não podemos conversar aqui. Desculpe.” Ela retruca “Sou professora. Nossa! Fiquei até com medo de um ataque terrorista agora”, enquanto se volta para a frente e se cala. As mãos inquietas denotam que conversar é sua forma de aliviar a tensão. Gosto muito de conversar também e provavelmente teria apreciado a charla mas na vida tudo tem sua hora e lugar. Ainda há gente chegando e se enroscando nos lacres dos sacos. Um rapaz veste uma jaqueta com a logo de R.I. de alguma faculdade conhecida do Rio. Sorve um gole de uma daquelas bebidas energéticas, afinal, trata-se de uma maratona para atletas de alto desempenho. “É a primeira vez que participo de um concurso em que as pessoas realmente pararam para ler o edital e respeitaram claramente duas regras, a da transparência das canetas e a dos lanches dispostos em recipientes transparentes, que máximo!” Não há conversa paralela, excetuado o caso da moça professora que antes me abordara, a qual, aliás, continua tentando puxar conversa com outra pessoa. O rapaz continua de pé entre as fileiras olhando atentamente para todos, inquisidor. “Deve ser fiscal”. Não era. Apenas um ceacedista como tantos outros (provavelmente hiperativo e ansioso) buscando aliviar a tensão. Os pacotes lacrados chegam. “Quem pode assinar como testemunha? Preciso de duas pessoas”. Um candidato de alta estatura levanta a mão. Eu também, mas sou ignorada por alguém ensimesmado e despreocupado com o entorno, que se ergue antes de mim. “Há gente madura como eu fazendo a prova. Que bom!”. “Puxa! Só três PNPs na sala?! Dois alguéns negros e um alguém pardo: eu.” Fecho os olhos por alguns minutos. Respiro, acalmo os pensamentos, relaxo o corpo, converso de novo com Deus. Entrego. Confio. Aceito. Agradeço. “All that happens is for my good alone. For my highest good.” Estou tranquila, como se um bálsamo refrescante me untasse a mente e o coração. Soa o sinal de início, que mais se assemelha a convocação para batalha épica e decisiva. Batalha, porém, é termo questionável, quiçá egoísta. Pressupõe adversários e ceacedistas nada mais são que grandes idealistas que acreditam que a diplomacia pode fazer do mundo um lugar melhor. Ou menos pior. Não são adversários, mas pessoas de bem que trazem consigo na alma um pouco de utopia saudável, inclusividade, pensamento sistêmico, visão de longo prazo e empatia pelo ser humano. Este ano entrarão os vinte mais bem preparados da fila, aqueles que já conheceram a via appia por tempo suficiente para maturar boa parte do conteúdo que o CACD cobra do candidato. Os que persistiram e mantiveram a disciplina ao longo de anos, após as várias e inevitáveis quedas do percurso, estes vencerão agora. É questão de tempo, apenas. “Escasso tempo, aliás, para ti, ó prova de Língua Portuguesa! Não acredito que não consegui responder todas as questões da minha área de formação por falta de tempo, lástima! Está feito. A manhã terminou.”

O Uber chega. Almoço frugal, para evitar a sonolência, pois preciso ficar alerta para responder às questões de inglês. “Como foi?”, pergunta a família. “Nunca sei. Sempre aguardo o gabarito final”. “Mas o que você achou?” “Não sei. Vamos aguardar. Só sei que não vou para a segunda fase. Não era o meu objetivo deste ano. Fiz a prova apenas para me situar e, quem sabe, com pontuação suficiente, poder concorrer a uma bolsa da ação afirmativa no ano que vem”. Queria ter almoçado em silêncio, mas a conversa em torno da mesa de refeição familiar não pôde ser suprimida, ritual que é da casa anfitriã. Corro. Escovo os dentes. O Uber chegou. “A sala está fria, mas agora o sol que atravessa a janela toca suavemente as minhas costas num aconchego bom.”. Paro. Fecho os olhos e medito em alheamento parcial ao mundo externo. Os pacotes chegaram. Abro os olhos. Testemunhas são convocadas. Duas. Desta vez, o rapaz da jaqueta de R.I. se oferece para assinar. Prova sobre a mesa. “Deixei Língua Portuguesa por último, vou fazer o mesmo com Inglês”. Pessoas folheando o encarte. Assentos vazios aguardam os ausentes. Que ficaram pelo meio do caminho por uma razão que eu jamais vou saber. Dentre eles, está ausente um dos candidatos negros, infelizmente. O-rapaz-hiperativo-pseudo-fiscal descalça os tênis, alonga a coluna e as pernas e parte para o ataque vespertino, debruçando-se sobre os papéis. E o tempo. Sempre ele. Escasso novamente. Alertando para a necessidade de ser melhor gerenciado nas próximas edições. Gestão do tempo é condição sine qua non para o futuro diplomata. Cada um de nós dispõe das mesmas vinte e quatro horas para uso pessoal (produtivo ou não). Fiz bom uso do meu tempo ao longo desses primeiros meses de preparação, com todos os atropelos e desafios que a responsabilidade de gerenciamento doméstico e de educação de filhos sem terceirização demanda de uma pessoa. E que a restrição financeira me impôs. Estou feliz. Meu trabalho está terminado e foi muito bem feito, dentro das pessoalidades limitantes da minha vida hoje.

Da experiência do primeiro CACD, carrego o seguinte balanço:

 1.     Sim.

2.     Quero.

3.     Consigo.

4.     O plano funciona.

Àqueles que, como eu, num exercício inquestionável de volição firme, continuarem trilhando a via appia que leva ao rubicão do CACD e ao posterior oásis do IRBr, meus votos mais sinceros de sucesso e de vitória. Que possamos cultivar os estudos com a disciplina pessoal contínua, tão necessária para aspirantes a diplomata. Em breve, quem sabe, sentaremos juntos em algum lugar do mundo para comemorar a nossa empreitada bem-sucedida.

Sejamos sempre felizes.

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