Pessoa parda. Nascida no dia de Jorge Guerreiro, segundo a tradição do candomblé; dia também do advento de Shakespeare. O ano: 1979. Educada por mãe preta, solteira e doméstica subjugada pela vida e por um contexto social que a privara da formação escolar que poderia ter-nos dado uma vida menos rude. Jamais conheci meu pai, que abandou minha mãe grávida de mim no sétimo mês da gestação.
Desde muito cedo, observando-a exercer seu ofício em casas alheias, desejei uma sorte diferente da dela; intentei seguir a Medicina, inclinação despertada, talvez, pelo fato de eu haver passado uma parte da infância na casa da família que recebera a minha genitora como “filha de criação”, eufemismo para exploração de trabalho infantil. Seus patrões eram profissionais de saúde, e com eles convivi do nascimento aos cinco anos, ininterruptamente, morando com minha mãe no quartinho de empregada do apartamento de classe média tijucano, e, depois, intermitentemente, até a puberdade.
Quando minha mãe engravidou do meu irmão, meu pequeno mundo sofreu uma reviravolta. A patroa não aceitara uma segunda criança (indesejada) em sua casa (o que compreendo), convidando-nos a retirar-nos de seu espaço, embora continuasse utilizando-se dos serviços gerais de minha mãe. A nós nos restou o único caminho viável para uma doméstica assalariada com duas crianças pequenas: a favela. O Morro da Formiga, na Cidade Maravilhosa para alguns, foi, por cinco longos anos, a minha morada. Lembro-me da estranha sensação de caminhar pelas ruelas estreitas de terra batida que, em dias chuvosos, salpicavam de lama pegajosa e fedorenta meus sonhos de menina. Mas a favela me ensinou – na medida do que uma criança é capaz de compreender os fatos da vida – bastantes coisas em curto espaço de tempo. Por exemplo, que há mais gente boa e de bem no morro do que reza o senso comum. Que é possível ser contente com pouco. Que há beleza em meio à feiura aparente, dependendo dos olhos de quem vê. E também que há perigos reais espreitando feito lobos famintos as almas desavisadas. Por vontade exclusiva do Senhor do Universo, fomos retirados dali antes que eu entrasse na adolescência, segunda fase crucial e decisiva para uma vida adulta equilibrada. Não sei que caminhos eu teria percorrido, se aquela fosse a minha realidade única. O fato é que a vida seguiu trazendo-nos, no momento oportuno, a chance de novas e melhores experiências. Eu tinha dez anos quando minha sorte novamente mudou.
A patroa de minha mãe — a quem carinhosamente eu chamei de “vó” a vida inteira — foi promovida a um cargo de chefia em renomado hospital de Aracaju, capital sergipana, e convidou minha mãe a seguir viagem junto. Diante do aceite, seguimos para o Nordeste e lá ficamos por dois anos. Foi um tempo bom, que me ampliou as perspectivas de mundo. Estudei no Colégio Atheneu Sergipense, público de qualidade, e minha estada ali foi feliz. Porém, como a roda da vida é dinâmica, a aventura seguinte foi a mudança de Aracaju para Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, novamente com a patroa da minha mãe.
Passei naquela cidade querida toda a minha adolescência e parte da vida adulta. Ali adquiri os alicerces de princípios e valores que tanto prezo. Ali me iniciei no maravilhoso mundo das Letras, minha área de formação que tanto contentamento me traz (a Medicina nunca aconteceu na minha vida). Ali trabalhei como jornalista, professora e tradutora. Ali despertei para a espiritualidade. Ali construí e desconstruí amores. Ali tive minha primogênita querida. Plantei árvores. E também escrevi meu primeiro livro nunca publicado: Cheiro de Flor — grandes histórias para gente pequenina (só no tamanho).
Já posso morrer?
Não, ainda não.
Tenho um grande projeto pela frente: tornar-me diplomata, porque, parafraseando o poeta,
(…) eu sou do
tamanho do que vejo.
E não do tamanho da
minha altura…
E o que vejo são meus sonhos.
(O Guardador de Rebanhos, por Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.)