Este ano marca o centenário de nascimento de Clarice Lispector, a ucraniana mais brasileira de que se tem notícia. Nascida Haia Lispector aos 10 de dezembro de 1920, ela foi uma mulher à frente de sua época. Soube traduzir, com maestria e alto grau de poeticidade, dilemas profundos da alma humana. Tinha sede de mundo, de cultura, de vida.
Uma de suas obras mais populares é A Hora da Estrela, a última da autora, escrita em 1977 e publicada postumamente em 1978.
Carta ao Presidente
Aos 21 anos, em face da guerra e da urgência de casar-se com o diplomata brasileiro Maury Gurgel Valente, Clarice redige uma carta ao então presidente Getúlio Vargas, na qual lhe pede a naturalização, concedida em 12 de janeiro de 1943:
Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942
Senhor Presidente Getúlio Vargas,
Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n’A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também.
Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.
Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação — requisito que poderia alegar para ter direito de pedir a vossa excelência a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do Rio e dos Estados, na divulgação e na propaganda do governo de vossa excelência. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.
Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por vossa excelência, e estive mesmo ao lado de vossa excelência mais de uma vez, sendo que a última em lº de maio de 1941, Dia do Trabalho.
Se trago a vossa excelência o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira.
Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo. Infelizmente, o que não posso provar materialmente — e que, no entanto, é o que mais importa — é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.
Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a vossa excelência a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de vossa excelência tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, senhor presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.
Clarice Lispector
(Clarice Lispector. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, pp. 33-34)
Algumas das obras
1943 — Perto do Coração Selvagem. Livro de estreia de Clarice.
1946 — O Lustre
1948 — A Cidade Sitiada, escrito em Berna, durante o período em que Clarice acompanhou o marido diplomata na Suíça.
1960 — Água Viva
1977 — A hora da estrela
Obras da autora traduzidas para o francês, o espanhol e o inglês
Perto do Coração Selvagem — Près du coeur sauvage; Cerca del corazón salvaje; Near to the wild heart
O Lustre — Le lustre; La lámpara; The chandelier
Água Viva — Agua viva; The stream of life
A Hora da Estrela — L’heure de l’étoile; La hora de la estrella; The hour of the star
A Cidade Sitiada — La ciudad sitiada
Minha aposta: Clarice pode aparecer no CACD 2020
Ano de centenário da autora. Bibliografia já traduzida para os idiomas cobrados no concurso. Isso cheira a CACD. Se eu fosse membro da banca, você encontraria uma questão minha pedindo a versão de um trecho de algum título da Clarice nas suas provas de línguas.
Para sua sorte ou para seu azar, eu não estou na banca do CACD, mas, ainda assim, sugiro que você olhe com carinho para trechos escolhidos das obras de Lispector, seja das mais famosas, como A Hora da Estrela, seja das menos conhecidas, como A Cidade Sitiada, e tente fazer suas próprias versões ou traduções em inglês, francês e espanhol. E depois coteje com as edições das línguas-alvo para ver como se saiu no exercício.
Mas, antes de tudo, procure conhecer Clarice na nossa língua materna: porque pode ser a hora e a vez de Madame Lispector abrilhantar a prova de Língua Portuguesa do CACD 2020.
O próximo artigo falará do centenário de um outro gigante da literatura brasileira: João Cabral de Melo Neto.
Bons estudos e sucesso!
Créditos:
Foto: internet/reprodução
Fundo do papel da carta: Aopsan para Freepik
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